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Alair Gomes: Outros Trajetos

25 maio 2015

Artigo arquivado em Análise documental

Ao pensar o tema “Família” na Coleção Alair Gomes, as imagens que remetiam à ideia de grupo, tribo, pertencimento e familiaridade territorial eram as dos rapazes jogados uns sobre os outros, corpos bronzeados na preguiça solar do mítico Píer de Ipanema. Jovens observados à distância pelo fotógrafo com fama de “voyeur”.

A praia de Ipanema era o seu local preferido, seu imaginário e sua inspiração. Foi ela que apareceu congelada, sob a neve, em um sonho recorrente (ou pesadelo), registrado em seu diário sob o título “Dream again”, em 4 de junho de 1992, dois meses antes de seu assassinato.

“A novidade é que o Brasil não é só litoral, é muito mais que qualquer Zona Sul”, canta a música de Milton Nascimento. Alair sabia muito bem que o urbano se estendia para além da faixa de areia dourada e foi atrás do outro Rio de Janeiro para compor um retrato sobreposto, contrastante e complementar da cidade. Fotografou a Zona Central, Gamboa, Santa Teresa e Lapa, revelando o espaço boêmio/intimista de seus bares e frequentadores, a aspereza de seu casario, e brincou com a geometria de sua arquitetura irregular.

Ainda há muito a revelar dessa riqueza iconográfica. O ensaio mostrado nesta edição refaz outros trajetos realizados pelo fotógrafo: as praias da Zona Oeste, os parquinhos de subúrbio, cenas de procissões, famílias em piqueniques, pescadores, o cotidiano da rua. Uma cidade “primitiva” e onírica, estranhamente mapeada por seu olhar. Alair vaga no limite da tradição fotográfica documental, dialogando com os clássicos Gautherot, Verger e Farkas, mas opta pela subversão autoral, imprimindo às cenas um toque de irrealidade singular.

Cerca de 30 mil folhas manuscritas foram doadas à Biblioteca Nacional em 2004. Desde que foram doados, os diários se encontravam trancados no armário, o tom de segredo pairava, ninguém havia se aventurado a “olhar no buraco da fechadura” e descobrir o que estava guardado ali. Cadernos amarrados com papeizinhos rosa indicavam seus conteúdos, caixas com fitas cassete etiquetadas, cadernetas, folhas soltas, cartões-postais e fichas, muitas fichas.

Logo nas primeiras leituras, percebeu-se que os diários mantinham uma forte unidade narrativa com a documentação fotográfica. Mergulhar na compreensão dessa “obra de arte total” só era possível a partir desse diálogo.

Seus diários guardam informações sobre o seu cotidiano, relatos de viagens, leituras, reflexões sobre arte, filosofia, psicanálise, suas amizades e, sobretudo, seus amores. Nesse conjunto aparentemente caótico, surgia aos poucos a organização e a classificação dada pela irmã Aíla Gomes. Ela conviveu com esse espólio em seu apartamento. Octogenária e muito católica, leu, reviu, criou índices. Será que descartou algo? Censurou? Não sabemos.

A leitura dos diários não é tarefa fácil. Todos redigidos em inglês, com uma grafia que mais se assemelha a um código, é necessária concentração. Curiosamente, o uso da língua estrangeira embala a escrita de Alair Gomes, e esta adquire ritmo intenso e fluido.

No diário “NewEST Journal – most recent entries ‒ 1992”, vemos um Alair no auge dos seus 70 anos, melancólico, reclamando sobre o fato de ainda não ter sido publicado e compreendido, lamentando que nem mesmo seus amigos mais próximos davam a devida atenção a seus desafios intelectuais. O temor (que sempre o acompanhou) de morrer e deixar seu mundo, sua gigantesca obra, incompreendida, foi parcialmente suavizado com a redação de seu testamento em 1983, no qual efetuou a partilha de sua obra fotográfica e literário-filosófica entre seus amigos mais próximos e a irmã Aíla Gomes.

Os diários foram divididos em duas fases pelo artista, “para diferenciar os primeiros diários, ‘Journals de 1954 a 1972’, cuja natureza era (puramente) erótica” e inaugurar uma escrita de cunho filosófico, os “New journals, de 1981 até 1992”. Segundo Alair, a descrição de seus encontros amorosos, registrada em seus primeiros diários, não resultava em nenhum tipo de reflexão e anulava o sentido metafísico inerente a essas experiências.

Sua filosofia começou a ser pensada na década de 1980, quando se apaixonou por um rapaz para o qual ele “direcionou sua devoção”. O relato está registrado nas páginas do diário “Love Journal de 1986/7”, onde se lê na folha de rosto: “for publication, but not now, some 20 or 30 years after”.

Contudo, seus desafios intelectuais iam além. Poucos meses antes de sua morte, Alair preparava um tratado sobre a sexualidade humana, o “Homo Eroticus”. A obra se tornou uma obsessão para ele: índices, assuntos, listas temáticas infinitas mostram o turbilhão mental no qual vivia. Nos anos 1960, quando era professor de filosofia da ciência no Instituto de Biofísica da UFRJ, Alair desenvolveu uma tese sobre reflexividade e consciência, retomada sob nova ótica nessa obra audaciosa. Rever exaustivamente as discussões em torno das origens do erotismo era a possibilidade de criar uma teoria que desse conta de sua própria condição e justificasse, “cientificamente”, as origens do seu prazer.

Escrever era vital para Alair. O registro escrito era o fio que costurava a coesão entre arte, vida e reflexão filosófica. Isso explica o cuidado em reorganizar seus manuscritos, dar sentido e coerência a sua vida, explicar suas preferências homoeróticas e, ao mesmo tempo, tornar compreensível o seu mundo para a irmã.

Curiosamente, Aíla Gomes, tradutora de Shakespeare e Dickinson, leu atentamente os registros e dialogou com o irmão morto: construiu um diário dentro do diário. O conteúdo carregado de emotividade e compaixão revela os espaços que delimitaram a relação entre os dois.

Da relação fraterna à paternal, a família está representada nos diários de Alair nos textos que dedica a sua mãe e, sobretudo, a seu pai.

Nos escritos de 1989, o texto “My Young Father” se destaca. Uma celebração do reencontro com o pai ainda jovem a partir de uma antiga fotografia ampliada. O duplo jogo entre a imagem e a escrita o auxiliam a posicionar o pai em seu panteão erótico particular. De forma elegante, Alair conduz a figura paterna ao espaço do amor e da paixão à juventude masculina, para, ao final, declará-lo como seu mais “imenso tesouro”.

* Luciana Muniz é socióloga, responsável pela pesquisa e catalogação da Coleção Alair Gomes na Biblioteca Nacional.

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA S/N BRASIL