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O Catálogo de Exposição de História do Brasil (1881) *

29 jun 2014

Em 2 de dezembro de 1881, aniversário do imperador, inaugurou-se na Biblioteca Nacional a Exposição de História do Brasil, organizada pelo seu então diretor Benjamin Franklin de Ramiz Galvão. A exposição teve por objetivo apresentar ao público “tudo o que concerne à história pátria”1, segundo as palavras do próprio Galvão. Além de documentos e peças pertencentes ao acervo da Biblioteca, seu prédio foi também ocupado por objetos, livros e obras de arte provenientes de coleções privadas e outras instituições públicas. As salas e corredores do estabelecimento situado na rua do Passeio foram amplamente preenchidos pelos elementos reunidos para a consolidação desse grande inventário geral de “documentos impressos, manuscritos e desenhados” que formavam “as riquezas históricas do país”.2 Capistrano de Abreu fez parte da equipe que realizou o ambicioso projeto.

O projeto idealizado por Galvão incluía a realização de conferências de história e geografia durante a exposição. Pouco sabemos sobre tais conferências. Encontramos uma carta de Capistrano de Abreu, de 12 de março de 1881, na qual convida para o evento o gaúcho republicano Joaquim Francisco de Assis Brasil3.

Entretanto, como os jornais da época já assinalavam, o resultado mais relevante da exposição foi, sem dúvida, o volumoso catálogo que elencou todos os documentos levantados pelo grupo liderado por Ramiz Galvão. O Catálogo da Exposição de História do Brasil (CEHB) é, de fato, até hoje, um precioso instrumento de trabalho para os historiadores, mesmo que seja necessário complementá-lo com inventários mais recentes.

Segundo o jornal trimestral publicado pela Aldina Steam Printing Office, The Rio News, “The catalogue, which after all is the most important part of the exposition, will be of incalculable service to all who have occasion to study Brazilian subjects.”4 A Gazeta de Notícias também rendeu homenagem ao catálogo: “Este livro de 1.612 páginas, ainda faltando o suplemento e o índice de autores, é incontestavelmente um monumento levantado às letras pátrias, que atestará em todos os tempos o que foi a Exposição de História do Brasil”.5

Desde a vinda da Biblioteca para o Brasil, em 1808, houve preocupação, por parte dos diretores, em estabelecer um catálogo que pudesse listar o acervo existente no estabelecimento. Porém, foi apenas na gestão de Ramiz Galvão que se organizou um catálogo de tamanha magnitude. Sua administração trouxe uma série de inovações à Biblioteca Nacional. Foi nesse período que a instituição começou a ter uma maior preocupação com o papel de construção da memória nacional e do resgate do passado, por meio dos Anais da Biblioteca Nacional, da Exposição de História do Brasil e do Catálogo da Exposição de História do Brasil.

Antes do CEHB havia catálogos parciais de impressos, como o da Exposição Camoneana, feito pela Biblioteca Nacional por ocasião da comemoração, pelo Gabinete Português de Leitura, do terceiro centenário da morte de Luís de Camões, em 10 de junho de 1880. Os primeiros catálogos da Biblioteca foram produzidos por frei Antônio de Arrábida, seguindo determinação dos Estatutos de 18246.
Eram, porém, muito incompletos e não davam conta de todas as obras existentes na instituição. Somente em 1881, graças à Exposição de História do Brasil, conseguiu-se proceder a esse grande inventário.

Em carta de 19 de agosto de 1880, escrita pelo diretor da Biblioteca Nacional ao conselheiro do Império, o barão Homem de Mello, Galvão destaca a importância de se fazer um catálogo capaz de ser um referencial para os estudiosos: “(...) organizar um catálogo completo de quanto possa pertencer ao referido ramo de estudos, – obra que sirva de guia aos cultores desta seara, ponto de partida para investigações ulteriores (...)”. 7

A Exposição de História do Brasil tinha como principal objetivo levar ao conhecimento de todos as “riquezas históricas” relativas à “nação brasileira”, fossem elas das mãos de particulares ou do poder público, e, segundo o próprio Ramiz Galvão,“[...] procurou-se abranger o que respeita à história do país, e dos seus habitadores em todas as manifestações da atividade humana.” 8

Em seu discurso de abertura da exposição, no dia 2 de dezembro de 1881, que contou com a presença de personalidades da época, do corpo diplomático imperial e de d. Pedro II, Ramiz Galvão destaca o papel “patriótico” do evento, o qual seria “uma ressurreição do passado e uma previsão do futuro”9. Para o público, tudo se passa como se os documentos exibidos fossem eles mesmos história: tratava-se de uma exposição de história do Brasil e não, como diríamos hoje, de fontes concernentes à história do Brasil. Daí a palavra “ressurreição”. A importância que o diretor da Biblioteca Nacional atribuía aos desdobramentos ulteriores de seu trabalho dizem respeito à formação dos cidadãos e à consolidação da nação, já que, em suas palavras: “Um povo sem história é uma sombra que passa, não é um marco que fica; [...] é uma dúvida, não é um fato sociológico”10.

Ramiz Galvão conseguiu despertar o “zelo patriótico” de diversas pessoas interessadas pela história do Brasil, como foi o caso do livreiro João Martins Ribeiro, que doou à Biblioteca o códice História do Brasil, de frei Vicente do Salvador, cujo original datava de 1827 e usava pela primeira vez tal título. Capistrano de Abreu, em seu prefácio à obra de Frei Vicente, que publicou em 1918, explica tratar-se de uma cópia executada nos anos de 1850, em Portugal, provavelmente a partir da diligência de João Francisco Lisboa. O documento, parte do espólio do marquês de Olinda, foi comprado por acaso pelo livreiro e passara finalmente para a Biblioteca, graças à exposição11.

Planejada para ser uma exposição de dimensões extraordinárias, várias pessoas e instituições fizeram doações ou empréstimos de obras à Biblioteca. Destacam-se o barão Homem de Mello, conselheiro do Império; d. Francisco de Assis Mascarenhas; dr. Ladislau Neto; dr. F. A. Pimenta Bueno; o senador Cândido Mendes de Almeida, conde de Baependi; o Mosteiro de São Bento; o Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano e o Gabinete Português de Leitura, entre outros. Muitas dessas obras foram doadas à Biblioteca após o término da exposição12.

Por outro lado, apesar de todos os esforços e da ajuda dada com os empréstimos e doações feitos por instituições públicas ou particulares, houve casos em que associações literárias escondiam seus volumes preciosos para que não fossem examinados e classificados, além de bibliotecas que não enviaram uma nota sequer sobre algum manuscrito de valor para a remessa de documentos à exposição13.

Na apresentação do catálogo, Ramiz Galvão lamenta a falta da ajuda dos particulares, e mesmo das províncias do Império. O organizador destacou apenas a participação das províncias do Pará, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o que, segundo ele, causara algumas falhas documentais de certos períodos, coleções incompletas e insuficiência de notícias em relação a alguns fatos da história local14.

José Honório Rodrigues, na introdução à edição de 1981 do CEHB15, comenta que o catálogo é único por ser a primeira bibliografia brasileira, em substituição às estrangeiras e comerciais que existiam anteriormente. O catálogo, ainda segundo o historiador, conseguiu superar o que de mais completo existia na época: a Biblioteca luzitana, Crítica e chronológica na qual se comprehende a notícia dos
autores portugueses e das obras que compuzeram desde o tempo da promulgação da Lei da Graça até o tempo presente, de Barbosa Machado (1741-1759); o Diccionário bibliográphico portuguez, de Innocencio Francisco da Silva (1858-1879); e o Guia bibliográfico, de Ernesto Soares.

José Honório acrescenta que o CEHB superou todas essas obras por ser “um monumento bibliográfico-histórico, a maior bibliografia histórica publicada sobre um país no mundo”.16 Nenhum país, fosse ele europeu ou americano, possuía na época uma bibliografia da grandiosidade do CEHB. Ele informa também que, para Capistrano de Abreu, a exposição foi um mero pretexto para a verdadeira obra, o catálogo.

O catálogo da exposição de história do Brasil tem dois volumes e um suplemento, com 19.288 referências que, somadas às do suplemento, atingem o espantoso número de 20.337 entradas. Até hoje, o catálogo teve três edições, sendo uma original, de 1881, e outras duas fac-similares: a de 1981, editada pela UNB, fac-similar da original, e a de 2000, editada pelo Senado Federal, fac-similar da edição de 1981. Essas duas últimas edições têm um lapso numérico de 10 páginas, que não foi corrigido.

Não encontramos nenhum estudo ou documento de época que explique os critérios adotados no sistema classificatório do CEHB. José Honório Rodrigues, em seu livro Teoria da História do Brasil, descreve o que seria para ele a classificação ideal da documentação concernente ao Brasil, e faz críticas aos sistemas anteriormente utilizados, como o do CEHB. Quanto a este, afirma: “Esta classificação não é de todo satisfatória, particularmente porque não inclui todos os gêneros e espécies. É assim, por exemplo, que não vemos uma história da legislação, já que a constitucional ou a administrativa não abrangem todos os aspectos da legislação, nem julgamos satisfatórios certos títulos que deveriam ser mais amplos. História literária e das artes não compreende a história das idéias políticas, econômicas ou sociais e nem sempre contém a história da imprensa e a história da história”17.

A chave de classificação adotada no CEHB é composta por 20 classes, divididas em duas principais seções. Na Seção Literária, parte I, Preliminares, encontra-se a classe I, chamada Geografia do Brasil, que está dividida em cartas e descrições geográficas, documentos sobre os rios, costas e portos do Brasil, viagens, entre outros. Um primeiro olhar pode verificar a importância primordial dada ao território nacional. A descrição física e a geografia do país são tratadas como se fossem a base sobre a qual se ergueria a nação. Sua unidade não se funda apenas na ordem política; ela provém de alicerces naturais. A unidade geográfica tem um papel fundamental para a coesão nacional e para o controle de um país de dimensões gigantescas como o Brasil. O próprio diretor da Biblioteca Nacional concebeu como uma das principais metas do catálogo formar um “tesouro de informações sobre o nosso vasto território, que será tanto mais bem administrado e mais feliz, quanto mais perfeitamente conhecido for”18.

Durante a exposição, as peças referentes aos aspectos geográficos do país foram expostas na sala chamada Ayres de Casal, em homenagem ao autor da Corografia brasílica, livro publicado pela primeira vez em 1817 e considerado fundador da geografia brasileira. O Jornal do Commercio ofereceu a seus leitores a seguinte descrição da sala: “contém as obras de geografia e viagens, história civil e administrativa e coleção numismática colonial e do Império desde 1583 até 1881; das paredes desta sala pendem cartas geográficas, pela maior parte manuscritas e inéditas”.19

A classe II intitula-se Estatística, que na época não tinha um significado estritamente matemático, mas dizia respeito a informações coletadas por funcionários do Estado, militares, viajantes, médicos e curiosos que listavam dados referentes sobretudo às populações das diversas províncias. Em seguida vem Publicações Periódicas, com os anuários, almanaques, gazetas e periódicos de notícias, políticos, comerciais, científicos, religiosos e maçônicos, que tiveram relevante importância para a formação da opinião pública e para a divulgação de estudos científicos.

A parte II da Seção Literária intitula-se História do Brasil e é dividida em onze classes. A primeira é a História Civil, que reúne as obras de caráter geral e político sobre o Brasil e suas províncias, com parte subdividida por épocas marcadas pelas grandes datas políticas da história do Brasil, como os vice-reinados, a vinda da família real, abdicação de Pedro I, regência e maioridade, afirmando a tendência de se seguir uma história dos grandes acontecimentos.

Logo após vem a História Administrativa, apresentando os ministérios, os conselhos de Estado, a administração provincial, as câmaras municipais, o funcionamento das repartições públicas e autárquicas, com relatórios, orçamentos, legislação e inquérito. É a burocracia estatal presente na Exposição.

A classe VI é a História Eclesiástica, que pretende ilustrar as atividades da Igreja no Brasil. Examina sua doutrina e constituição, seu culto e disciplina. Segue-se a História Constitucional, que apresenta discursos, atas, relatórios, anais, folhetos, pareceres e falas sobre o regime eleitoral, as eleições, as assembléias legislativas, as constituições e a legislação provincial.

Na classe VIII aparece a História Diplomática, que relata a defesa dos direitos nacionais e as relações econômicas, sociais e políticas que culminaram em tratados e convenções. Esta rubrica se concentra especialmente nas questões dos limites territoriais e também examina as origens e os resultados das negociações diplomáticas de regiões significativas do país, o que demonstra a preocupação com a unidade do Brasil.

De acordo com o Jornal do Commercio, durante a exposição os documentos referentes à história eclesiástica, parlamentar e diplomática foram exibidos na “Sala Varnhagen”, homenagem ao historiador considerado “oficial” durante o Império, falecido em 1878.20 Anos mais tarde, Capistrano de Abreu teceria diversas críticas aos “quadros de ferro de Varnhagen”. Porém, em 1881, o que prevalece, sem dúvida, é a ênfase na cronologia, na atuação civilizatória do Estado e na continuidade entre a história da América portuguesa e do Brasil independente, caras ao autor de História geral do Brasil.21

A História Militar trata de mostrar as façanhas e feitos militares como uma matéria selecionada da história política, a qual não aparece classificada nesse índice. São descritas principalmente as incursões militares realizadas por estrangeiros contra os governos português e brasileiro. Aí são listados também os documentos concernentes à Guerra do Paraguai e à defesa da unidade do Estado nacional, como as revoltas do Rio Grande do Sul e a Sabinada.

A classe seguinte, História Natural, relembra os primeiros cronistas, os viajantes e os estudiosos de botânica, zoologia, mineralogia e geologia no Brasil. Em seguida vem a História Literária e das Artes, que é dividida em Instrução Pública, demonstrando o aumento da importância dada ao ensino durante o século XIX, e Associações Científicas e Literárias, Bibliografia, Crítica e His tória das Artes.

Os documentos relativos às rubricas História Militar, Natural, Literária e das Artes foram expostos na sala Velloso, assim chamada em referência ao botânico e editor da Tipografia do Arco do Cego, Mariano da Conceição Veloso. A descrição do Jornal do Commercio ilustra a profusão de temas e documentos que compunham essa singular exposição, onde obras de Alexandre Rodrigues Ferreira disputam espaço com pinturas da campanha cisplatina: “Acham-se aí quadros históricos da campanha cisplatina, uma copiosa coleção de estampas originais do botânico Lacerda, as obras manuscritas de Alexandre Rodrigues Ferreira, com belíssimos e numerosos desenhos, e, entre os retratos dos naturalistas, o do ilustre Augusto Saint-Hilaire, feito a craion pelo Dr. Ladislau Neto”22.

A classe de História Econômica, a décima segunda, é a maior de toda a chave de classificação do catálogo e engloba assuntos tão diversos como a civilização dos índios, asilos, hospitais, telégrafos e correios, ou seja, a economia está ligada à idéia de progresso nacional e à civilização, exemplificada pela presença de instituições filantrópicas e estatais, pelos avanços tecnológicos e pelo estabelecimento das práticas que buscavam incluir a população nas redes administrativas e institucionais públicas e privadas.

A classe XIII, Biografia, teve a intenção de garantir que notórias e proeminentes figuras não caíssem no esquecimento. No Brasil do século XIX, havia muitas biografias e estudos concebidos no estilo de elogios acadêmicos, de homenagens e comemorações aos grandes homens, característica, aliás, presente na historiografia tradicional. A sala onde foram exibidos os documentos de “economia” e biográficos foi chamada de “Silva Lisboa”, o visconde de Cairú, representante do liberalismo conservador.

A Numismática, última classe da Seção Literária no catálogo, mostrava moedas e medalhas, em sua maioria pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional.

Depois da Seção Literária, começa a Artística, com as últimas seis classes. Abrange estampas, pinturas, litografias, desenhos e fotos de paisagens, vistas marinhas, costumes e indumentárias. O CEHB e a Exposição de História do Brasil, como se pode averiguar por esta e outras rubricas, considerou as obras artísticas e os objetos históricos como documentos, sem se prender exclusivamente aos textos impressos ou manuscritos. A própria exposição privilegiou os documentos não textuais, como forma de atrair a atenção do público. A visão historiográfica, presidida pela ênfase na história política das elites e do poder estatal, não sofreu, porém, com este tipo de escolha. Basta imaginar o que foi a sala denominada Pedro II, descrita no Jornal do Commercio: “Nela se acham, em pedestais, bustos de brasileiros ilustres, alguns quadros históricos e particularmente retratos da família real portuguesa até 1822 e imperial brasileira, e doze antigos estandartes da Câmara Municipal da Corte”.23

A Gazeta de Notícias se deteve precisamente no tema da importância das imagens para a história. Um artigo, publicado em 26 de dezembro, propunha que se reproduzam as estampas “interessantes para servir de estudos da sociedade brasileira” e detém-se longamente na descrição de alguns quadros e, mais particularmente, na coleção de estampas de tipos, usos e trajes do Brasil, pertencentes ao conde d’Eu: “Parece à primeira vista sem importância reproduzir-se ou publicar-se estampas que simplesmente representam tipos, usos e trajes de um povo; entretanto, são elas do mais subido valor para o historiador ou para o pintor, para o romancista ou para o poeta épico ou descritivo, constituem os documentos fiéis e vivos que dão todo o realce ao objeto que se descreve ou se pinta.”24

Assim, a Exposição de História do Brasil e seu catálogo ofereceram ao público em geral e aos estudiosos uma série diversificada de fontes, classificadas por critérios que vão ao encontro das preocupações historiográficas da época. O que mais chama a atenção nesse grande inventário realizado no ocaso do Império, além da afirmação de uma suposta unidade e harmonia das instituições e da sociedade brasileira, é o espaço secundário ocupado pela escravidão. O nono parágrafo da classe XII, chamada História Econômica, apresenta o acanhado título de “Elemento servil”. Na exposição, só houve espaço, nas palavras de Ramiz Galvão, para o “monumento harmônico da grande família brasileira”,25 o que excluía a já vergonhosa memória do cativeiro.

Diversas outras críticas quanto às rubricas do catálogo poderiam ser levantadas, se levarmos em conta os pressupostos historiográficos mais recentes. José Honório Rodrigues já lembrou, entre outras coisas, que o CEHB não prevê lugar para a “história da história”.26 Como foi dito acima, o significado da palavra “história” nos textos produzidos por Ramiz Galvão levam a considerar os próprios
documentos como sendo uma “ressureição do passado”.

Em sua análise sobre a produção historiográfica do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lúcia Guimarães afirma que durante várias décadas a instituição não apresentou trabalhos de interpretação da história, preferindo oferecer a seus leitores fontes primárias ou textos fundamentalmente descritivos.27 Segundo Capistrano de Abreu, uma característica peculiar aos sócios do IHGB era a falta de aplicação ao trabalho sistemático. Em artigo da Gazeta de Notícias, de 1880, ao comentar um projeto do conselheiro Buarque de Macedo para a redação de uma história física e política do Brasil, afirma que, como em todos os outros projetos, de início apareceriam multidões de interessados, que se retirariam, tão logo o trabalho devesse se efetivar.28

No caso do CEHB, seus objetivos não foram além do estabelecimento de um grande inventário. A novidade foi a ênfase no trabalho infatigável de funcionários “patrióticos” e abnegados. A Gazeta de Notícias comentou que o catálogo “parece mais ter sido confeccionado por uma congregação de beneditinos”.29 O jornal trimestral The Rio News, publicado em inglês no Rio de Janeiro, informou que o projeto da Exposição havia sido concebido pelo “efficient librarian” Ramiz Galvão há apenas um ano. Apesar do prazo exíguo, continua o jornal, o catálogo fora muito bem executado: “A careful perusal will doubtless reveal defects, but in a hasty exa mination of its pages we have failed to find the evidences of slovenly work in composition and proofreading which are so common in most Brazilian books.”30

Ramiz Galvão, em seu discurso diante do imperador, sublinha o caráter inédito de sua empreitada: “Pela primeira vez na América e talvez no mundo, um grupo de trabalhadores realiza a exposição de tudo o que concerne à historia pátria, oferecendo aos seus concidadãos em um só e amplo quadro copiosa fonte de ensino do que foi, e calorosa animação para o que há de vir.”31

Efetivamente, a equipe coordenada pelo diretor da Biblioteca Nacional realizou um trabalho de fôlego. Seu empenho parece, no entanto, vinculado a um ideal de cruzada patriótica realizado por funcionários capazes, muito mais do que a qualquer referência à erudição e ao brilho de idéias individuais. Ainda no discurso de inauguração, Galvão vincula o desenvolvimento da história pátria ao
crescimento da “febre do trabalho que é a grande alma do progresso, e a força viva das gerações que caminham.” A modernidade do CEHB diz respeito ao desejo de proceder de forma metódica e eficiente. Seu elogio, constante da Gazeta de Notícias, no dia seguinte ao da inauguração, toca precisamente nesse ponto: “Todo o pessoal da Biblioteca Nacional, tendo à sua frente o esclarecido chefe Sr. Dr. Benjamin Franklin Ramiz Galvão, realizou prodígios de trabalho para levar a efeito a exposição que acaba de ser inaugurada, e especialmente para elaborar o respectivo volumoso catalogo [...] Não temos, pois, palavras que bastem para louvar e recomendar à gratidão do país esses dignos funcionários”.32

Em plena vigência de uma “ideologia do progresso”, a frase cunhada por um jornal para designar a Exposição da Indústria Nacional, de 1881, poderia perfeitamente ser dirigida ao evento da Biblioteca Nacional: “A exposição é para aqueles interessados no desenvolvimento do progresso do país”.33

Desde os trabalhos de José Honório Rodrigues, pouco mais se acrescentou sobre o processo que levou à realização da Exposição de História do Brasil e do CEHB. A organização da Coleção Biblioteca Nacional trouxe à luz a correspondência de Ramiz Galvão e documentos administrativos da instituição, poucos referentes ao século XIX e à exposição. Esperamos que este artigo possa despertar o interesse de outros pesquisadores, e que estes passem o olhar o catálogo como mais um artefato historiográfico e não apenas como instrumento de trabalho.

NOTAS

1 – Jornal do Commercio, 3/12/1881, PR-SPR 1 (134), Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional.

2 – Idem.

3 – “Obras de Capistrano, Ensaios e estudos, 2ª Série”, Prefácio à História do Brasil de Frei Vicente de Salvador, 1976, p. 111 a 128; Biblioteca Nacional (Brasil). Catálogo da Exposição de História do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, c.1981. p. X.

4 – The Rio News, Rio de Janeiro, RJ, Tipografia Aldina Steam Printing Office, dia 5/12/1881, Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional. PR-SOR 03454 (1).

5 – Gazeta de Notícias, 26/12/1881, Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, PRc-SPR 61 (13).

6 – “REGULAMENTO da Biblioteca Imperial e Pública da Corte (portaria e o regulamento)”, Rio de Janeiro, 13/09/1824, 06 p. BN/MSS, Coleção Biblioteca Nacional – doc. nº 65,4,004 n°007.

7 – Benjamim Franklin Ramiz Galvão, diretor da Biblioteca Nacional, 1870-1882. “Ofício dirigido ao ministro do Império, barão Homem de Melo, expondo o plano de uma Exposição de História do Brasil, com as instruções para a remessa de documentos históricos e o plano geral da Exposição”. Rio de Janeiro, 19/8/1880, 10 p. BN/MSS – doc. nº 48,1,003 n°075.

8 – Idem.

9 – Biblioteca Nacional (Brasil). Catálogo da exposição de história do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, c.1981, p. X.

10 – Jornal do Commercio, 3/12/1881, PR-SPR 1 (134), Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional.

11 – “Obras de Capistrano, Ensaios e estudos, 2ª. Série”, Prefácio à História do Brasil de Frei Vicente de Salvador, 1976, p. 111 a 128.

12 – “EXPOSIÇÃO de História do Brasil: nomes dos expositores”. BN/MSS, Coleção Biblioteca Nacional – doc. nº 48,1, 003 n°077.

13 – _____, Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: A Biblioteca, 1887. V. 12, p. 119/120.

14 – Biblioteca Nacional (Brasil). Catálogo da exposição de história do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, c.1981, p. VI.

15 – Biblioteca Nacional (Brasil). Catálogo da exposição de história do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasília, c.1981.

16 – Biblioteca Nacional (Brasil), idem, p. VIII.

17 – RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil – Introdução metodológica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. p. 148.

18 – GALVÃO, Benjamim Franklin Ramiz. “Ofício dirigido ao ministro do Império, barão Homem de Melo, expondo o plano de uma exposição de história do Brasil, com as instruções para a remessa de documentos históricos e o plano geral da Exposição. Rio de Janeiro, 19/8/1880. 10p. BN/MSS, Coleção Biblioteca Nacional – doc. nº 48,1,003 nº075.

19 – Jornal do Commercio, 3/12/1881, PR-SPR 1 (134), Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional.

20 – Sobre Varnhagen cf. Arno Wehling. “Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional”. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999; e Lúcia Guimarães, “Debaixo da imediata proteção imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1838-1889”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 156 (388), jul./set. 1995, p. 459-613.

21 – Cf. Ronaldo Vainfas, “Capistrano de Abreu, Capítulos de História colonial”, in Lourenço Dantas Mota (org.) Introdução ao Brasil.

22 – Jornal do Commercio, 3/12/1881, PR-SPR 1 (134), Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional.

23 – Idem.

24 – Jornal Gazeta de Notícias, 26/12/1881, Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, PRc-SPR 61 (13).

25 – Discurso de Ramiz Galvão, Jornal do Commercio, 3/12/1881, PR-SPR 1 (134), Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional.

26 – José Honório Rodrigues. Teoria da História do Brasil – Introdução Metodológica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 149.

27 – GUIMARAES, Lúcia. “Debaixo da imediata proteção imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1838-1889”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 156 (388), jul./set. 1995, p. 459-613.

28 – Ibid. p. 577-578.

29 – Jornal Gazeta de Notícias, 26/12/1881, Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, PRc-SPR 61 (13).

30 – Jornal The Rio News, 5/12/1881, Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional. PR-SOR 03454 (1).

31 – Jornal do Commercio, 3/12/1881, PR-SPR 1 (134), Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional.

32 – Jornal Gazeta de Notícias, 3/12/1881, Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, PRc-SPR 61 (13).

33 – Jornal O Industrial : órgão da Associação Industrial, 8/12/1881, Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional, PR SOR 03363 [1].

* Maria Eliza Amadeo é mestranda no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

* Lorelai Kury é professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz e professora do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ