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Apresentação

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Apresentação

Elas as mulheres

“Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados”, assim Capistrano de Abreu definiu a família patriarcal, núcleo de boa parte da sociedade brasileira. Nesse tipo de família, em que o homem decide e comanda tudo, o espaço feminino ia da alcova à cozinha, cabendo à ‘sinhá’, mais tarde ‘rainha do lar’, o papel de zelar pela administração da casa, pelo bem-estar do marido e pela formação dos filhos.

As severas ordenações reais – afonsinas, manuelinas, filipinas – e a ‘vontade de Deus’ eram os mais fortes alicerces, na época colonial, daquelas famílias extensas e rigidamente hierarquizadas. Como fazem crer, por exemplo, os conhecidos sermões do padre Antônio Vieira: “Em Adão e Eva se viu a diferença que há entre o entendimento do homem e o da mulher – porque Eva foi enganada, Adão não. Ensine logo, Adão, ensine o homem; Eva e a mulher, não ensine.

O que só convém, e o que lhe mando, é que aprenda e cale: Mulier in silentio discatt [...]” (Sermão de Santa Catarina, 1633).

Imagine-se o impacto de palavras como essas, ditas por um homem de gênio e de rara eloquência, sobre os fiéis, fossem homens ou mulheres. Avalie-se, levando-se em conta o que era o Brasil do século XVII, o seu poderoso efeito no pensamento de pessoas simples, a grande maioria iletrada, sem luzes. Por isso, no longo percurso rumo à emancipação, a mulher brasileira teve que enfrentar obstáculos que pareciam intransponíveis.

Até o início do século XIX – quando em alguns países europeus os costumes se transformavam, e as mulheres já participavam, embora como coadjuvantes, dos grandes acontecimentos políticos –, quem chegasse ao Brasil podia ter a enganosa sensação de estar numa terra sem mulheres.

Apenas as escravas, vistas também como meios de ganho de seus senhores, é que frequentavam, em suas lides diárias, o espaço público. Os registros de artistas, como Carlos Julião e Debret, e da maioria dos viajantes ao Brasil, testemunham isto. Às senhoras brancas cabia o lugar consentido por trás das gelosias, de onde lhes era permitido observar, à sombra e pelas frestas, o mundo solar dos homens. Se saíam às ruas, conduzidas por seus escravos, era em cadeirinhas ou serpentinas protegidas por cortinas, e sempre cobertas de mantos, ao estilo moçárabe – um modo de ocultar os detalhes de sua anatomia. E quando passeavam com os maridos, seu lugar era atrás, e não ao lado deles.

Por três séculos, a mulher da Colônia esteve condenada ao silêncio. Se uma ou outra se sobressaiu nesse período, foi em função do poder ou prestígio de seus homens. A lendária Chica da Silva entrou para a história por ter seduzido um rico contratador português.

Bárbara Heliodora e Maria Dorotéa Joaquina de Seixas, a Marília de Dirceu, são conhecidas como musas da ação libertadora de poetas inconfidentes. Houve mulheres poderosas na Colônia, como Ana Jacinta de São José, a Dona Beja, cuja história de paixão, rapto, prostituição e assassinato abalou a cidade mineira de Araxá (MG), Benta Pereira, fazendeira em Campos (RJ), que, aos 72 anos, pegou em armas para garantir os limites de suas terras, ou Maria da Cruz, líder de uma rebelião no sertão de Minas Gerais contra o governo da capitania. Ao lado delas, uma legião de anônimas assumiu, muitas vezes com enorme sacrifício, a chefia de lares abandonados pelos maridos.

Os costumes só começariam a mudar no Brasil com a chegada da Corte portuguesa, em 1808, e como efeito das duas grandes revoluções iniciadas no século XVIII: a revolução moral e espiritual da humanidade provocada pelo Iluminismo e a Revolução Industrial.

Embora o reino lusitano não fosse um bom exemplo de avanços sociais, um novo estilo feminino e uma nova sociabilidade foram aos poucos introduzidos, primeiro na Corte, depois nas principais cidades, em contraponto aos nossos costumes rústicos de colonizados. Algumas eram mudanças cosméticas. Um jeito mais composto e civilizado de se vestir e de se mostrar à sociedade. Outras mudanças, como as que davam autonomia aos desejos individuais, eram mais reais, porém lentas, ambíguas e quase sempre conflituosas.

Carlota Joaquina, mulher de D. João VI, enfrentou a diplomacia inglesa e as duas cortes ibéricas, ao tentar criar, na região do Prata, uma monarquia independente da Espanha, então ocupada por Napoleão.

Depois ainda sofreria o descaso ou a incompreensão da historiografia e de quem mais dela se ocupou. Já a culta e sensível Maria Leopoldina, nossa primeira imperatriz, teve papel ativo nos momentos decisivos da Independência, mas padeceu sob o poder do senhor seu marido e dos que o cercavam.

As guerras brasileiras de independência ofereceram comoventes exemplos da capacidade das mulheres para assumir novos papéis – em geral, sem abandonar os antigos – e ocupar com altivez seu lugar no mundo dos homens. Os casos mais conhecidos foram os das baianas Maria Quitéria, que se vestiu com as roupas do cunhado e ingressou no regimento de infantaria de sua província, e da sóror Joana Angélica de Jesus, que se tornou mártir da Independência ao impedir a entrada de soldados portugueses, em busca de combatentes brasileiros, no Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa.

Quase dez anos depois da Independência, em 1831, é que iria despontar aquela que é considerada nossa ‘primeira feminista’: Nísia Floresta Brasileira Augusta (1809-75), a Nísia Floresta. Divorciada do primeiro marido e viúva do segundo, sustentou não apenas os filhos, como também seus ideais indianistas, abolicionistas e feministas, seja na Europa – onde viveu por 28 anos e conheceu personalidades como o filósofo Auguste Comte e a escritora George Sand –, seja no Brasil.

Ao longo do século XIX, a modernização do país não se faria sem a participação crescente de mulheres desejosas de se libertar da tutela e dos preconceitos masculinos. Se a nascente ‘indústria cultural’ multiplicava os manuais de ‘boa conduta’ e os periódicos ‘femininos’, também se publicavam os primeiros livros e se fundavam os primeiros periódicos feministas, estes dirigidos por mulheres: “(...) uma Senhora à testa da redação de um jornal! Que bicho de sete cabeças será?” – indagava maliciosamente, no primeiro número do seu Jornal das Senhoras, a argentina radicada no Brasil Juana Paula Manso de Noronha.

Os periódicos se tornaram os principais veículos da luta de libertação das mulheres: O Mentor das Brasileiras (1829), na mineira São João Del Rei, o Espelho das Brazileiras (1831), A Fluminense Exaltada (1832), A Filha do Timandro (ou A Brazileira Patriótica) (1848), o Bello Sexo (1862), o Echo das Damas (1873), A Família (1888), no Rio de Janeiro. Na pequena cidade de Campanha, no sul de Minas, O Sexo Feminino, fundado em 1873 pela professora Francisca Senhorinha da Motta Diniz, manifestava ideais feministas e republicanos:

Queremos a nossa emancipação – a regeneração dos costumes;
(...) Queremos a instrução para conhecermos nossos direitos, e deles usarmos em ocasião oportuna;
Queremos conhecer os negócios de nosso casal para bem administrá-los quando a isso formos obrigadas;
Queremos enfim saber o que fazemos, o porquê, o pelo quê das coisas;
Queremos ser companheiras de nossos maridos, e não escravas;
Queremos saber o como se fazem os negócios fora de casa;
Só o que não queremos é continuar a viver enganadas.

Termos ingênuos demais? Não. Seria um juízo desatento e anacrônico, pois as mulheres davam apenas os primeiros passos emancipacionistas naquela sociedade de raízes profundamente estamentais e religiosas. E, por muito tempo ainda, deixariam transparecer suas hesitações e conflitos interiores, devidos, sobretudo, à inevitável interiorização dos valores masculinos. Nem por isso deixariam de protagonizar novos avanços.

Na penúltima década do século XIX, mulheres de diversas províncias do Império engajavam-se na campanha abolicionista – casos da cearense Maria Tomásia Figueira, da amazonense Elisa de Faria Souto e da pernambucana Odília Pompílio. A campanha culminaria na assinatura, por Isabel, “a Redentora”, da áurea lei de 13 de maio de 1888.

Nas décadas iniciais do século XX, foi a vez das mulheres socialistas e anarquistas, como a escritora e militante libertária Maria Lacerda de Moura, para quem a emancipação feminina só seria plena com a transformação radical da sociedade.

A movimentação emancipacionista prosseguiria com as conquistas sufragistas. Em 1918, no Rio de Janeiro, a advogada e bióloga paulista Bertha Lutz, depois de sete anos de estudos na Europa, iniciava a luta que levaria à criação, pela primeira vez no país, de uma ‘liga de mulheres’. Propugnava-se não apenas o voto feminino, mas a ideia de que cabe à mulher assumir “os deveres políticos que o futuro não pode deixar de repartir com ela”. Três anos depois, nascia a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que logo organizaria o 1º Congresso Internacional Feminino.

Em 1927, a potiguar Celina Guimarães Viana e, no ano seguinte, a mineira Maria Ernestina Carneiro Santiago de Souza, a Mietta Santiago, conquistavam, por sentenças judiciais, o direito de votar e serem votadas. “Mulher votando? / Mulher, quem sabe, Chefe da Nação? / O escândalo abafa a Mantiqueira, / faz tremerem os trilhos da central / e acende no Bairro dos Funcionários, / melhor: na cidade inteira funcionária, / a suspeita de que Minas endoidece, (...)” – saudava a “Mulher eleitora”, em tom preditivo, o poeta Carlos Drummond de Andrade.

A jovem advogada e escritora mineira não foi eleita, mas a potiguar Alzira Soriano, na pequena e ousada cidade de Lajes, sim: tornou-se a primeira prefeita do país. Deu no New York Times! A vitória final do movimento sufragista viria em 1932, com o pleno reconhecimento, pelo novo Código Eleitoral, daqueles direitos.

No decorrer do século XX e do início do atual, o embate contra os preconceitos e a opressão se ampliaria. E em praticamente todos os planos da vida social. Dos movimentos sufragistas à conquista dos mais importantes cargos políticos. Das primeiras libertárias às militantes dos anos 1930 e às guerrilheiras dos anos 70. Da audácia de Chiquinha Gonzaga e da primeira-dama Nair de Teffé à irreverência alegre e revolucionária de mulheres como Carmen Miranda e Leila Diniz.

Do altruísmo das Anas e Anitas, à dor indefinível, que se converteria em profundo amor ao próximo, de heroínas como a camponesa Elizabete Teixeira, a empregada doméstica Marly Pereira, as “Mães de Acari” e ainda, irmanadas, as “Mães da Plaza de Maio” e todas as mães brasileiras que perderam seus filhos, maridos ou irmãos na luta por sonhos talvez impossíveis ou contra a violência policial criminosa.

E, também, da graça das Bartiras e Paraguaçus ao talento, generosidade e beleza das muitas Adélias, Anaídes, Anésias, Ângelas, Beatrizes, Betânias, Bibis, Bidus, Brancas, Cacildas, Carmens, Carolinas, Cássias, Cecílias, Ciatas, Clarices, Clementinas, Dilmas, Dinas, Djaniras, Dulcinas, Elis, Ercilas, Eugênias, Fernandas, Gilkas, Helenas, Hildas, Iolandas, Isabeis, Ítalas, Itálias, Júlias, Lélias, Leolindas, Lígias, Lúcias, Luízas, Luzes, Madalenas, Martas, Mayanas, Marinas, Maysas, Mães Menininhas, Natércias, Niedes, Nises, Pagus, Raqueis, Reginas, Ritas, Roses, Rosiskas, Rutes, Sonias, Tarsilas, Veras, Yvonnes, Zildas, Zuzus e de outras, tantas, todas... MARIAS.

O duro caminho de libertação da mulher brasileira, o seu deslocamento heroico do espaço doméstico, a que se recolhia, rumo ao espaço público, capitaneado tradicionalmente pelos homens – é o que a exposição Brasil Feminino pretende celebrar, ao apresentar ao público alguns dos mais significativos registros escritos, iconográficos e sonoros sobre o tema, existentes no acervo da Biblioteca Nacional.

Não se trata de mera batalha entre mulheres e homens, mas da história da superação de surrados argumentos e preconceitos.

Se favoreceram os homens, esses preconceitos também impregnaram a mentalidade feminina. E a recusa de um homem ao desafio de compreender a condição feminina pode ser entendida como um castigo, o de ter uma consciência mutilada, pois ignorante e insensível.

Ambos os sexos foram vítimas. Na aguçada dialética de Rousseau, “O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles” (Do contrato social, 1762).

Como Bertha Lutz havia afirmado no início do século passado, é luta compartilhada de homens e mulheres, em que ambos fazem concessões em favor do entendimento e da mútua libertação. Elas, evidentemente, no papel mais importante. Se cruzassem os braços, possivelmente pouco ou nada teria acontecido. E jamais uma mulher teria chegado, como chegou em 2010, à presidência da República – 179 anos depois dos primeiros escritos de Nísia Floresta e 137 anos depois das modestas reivindicações publicadas em O Sexo Feminino.

Marcus Venicio Ribeiro e Luciano Figueiredo
Curadores