A Viagem da Real Biblioteca
Iuri A.Lapa e Silva
Técnico em Pesquisa I da FBN

A Fundação Biblioteca Nacional possui uma das mais raras e ricas coleções em suporte papel do mundo, de acordo com a UNESCO. Algo que deveríamos estranhar. Afinal, durante seus 300 anos iniciais de história atlântica, Portugal proibiu, cerceou e controlou a entrada de livros em sua colônia americana. O histórico legado bibliográfico que hoje o Brasil possui encontra-se aqui por uma fatalidade. Ou, dependendo do ponto de vista, uma felicidade.

A invasão de Portugal em 1807 por forças francesas e espanholas levou a monarquia portuguesa à tomada de uma medida extrema para garantir a integridade de sua dinastia. Com a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, apenas os mais valiosos bens e as pessoas mais importantes teriam vaga garantida na travessia. Nos planos, estava a Real Biblioteca, coleção-mãe da futura Biblioteca Nacional. Na prática, entretanto, o frenesi de uma nobreza em fuga amesquinhou o fantástico conjunto de cerca de 60 mil peças, algumas mesmo únicas, deixando-o debaixo de uma chuvosa Lisboa, em caixões no cais do porto de Belém. Ordens amargas foram dadas ao partirem os navios: todos os papéis de Estado encontrados nos gabinetes da Real Biblioteca deveriam ser queimados. Todavia, os responsáveis pela execução das ordens não as acataram. Eles se mostraram diligentes e apegados à coleção da Família Real: além de não queimar papéis oficiais, preservaram os livros da rapina e do roubo dos franceses, que preferiram outras coleções, como a do Real Gabinete de História Natural.

Com a eventual saída francesa de Lisboa, os encarregados da Real Biblioteca trataram de enviar a coleção à nova Corte, conforme desejava dom João. O monarca tinha lá seus motivos para tal. Em 1755, um terremoto, seguido de maremoto e incêndio, destruiu uma porção considerável de Lisboa, devastando também a biblioteca da casa real. Esse precioso conjunto havia sido amealhado por gerações de reis portugueses. Dom José I, monarca de Portugal à época, não mediu esforços para reconstruir sua livraria real, fato que demonstra o apreço e a importância que a realeza depositava nos livros. Após esse lento processo de formação de uma nova biblioteca ao longo da segunda metade do século XVIII, imagina-se que o príncipe regente não tinha interesse em ficar afastado de seus preciosos livros e papéis. O envio das coleções se deu em três levas distintas entre os anos de 1809 e 1811. Em outubro de 1810, dom João decretou que a Real Biblioteca ficasse acomodada nas catacumbas do Hospital da Ordem Terceira do Carmo, a primeira de suas “casas” nos trópicos...

Em 2010, celebram-se os duzentos anos de uma história paradoxal. Uma colônia, que carecia de estímulos para a indústria e era cercada de toda sorte de controle a supostos perigos externos (livros incluídos), torna-se depositária de uma das coleções bibliográficas mais preciosas do Velho Mundo. Todo um acúmulo de conhecimento lá surgido – idéias de progresso e luzes que haviam sido ofuscadas nas possessões americanas de Portugal, mas também marcas de centenária tradição européia – encontraram-se a partir de 1810 potencialmente disponíveis para sonhadores, realizadores, ou simples curiosos. E, com o passar das décadas, acompanharam o Brasil em sua longa saga para forjar uma nação.

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