Januário da Cunha Barbosa
Lia Ramos Jordão
Técnico em Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional

No final da década de 1830, a vida intelectual da capital do Império estava agitada. Em 1837, a fundação do Imperial Colégio de Pedro II, destinado a formar os novos homens de letras do Brasil, mobilizou a elite econômica e política carioca. No ano seguinte, é criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que, com o objetivo de coletar documentos históricos e escrever a História do Brasil, contou com a colaboração de literatos de todo o Império. Proliferam os poetas e romancistas brasileiros. A atividade editorial crescia desde a chegada da imprensa em 1808 e as livrarias, cada vez mais, tornavam-se locais de intercâmbio intelectual e debate político. A precoce maioridade de D. Pedro II se aproximava e, com ela, o fim do Período Regencial. Apesar das turbulências vividas nos anos anteriores nas províncias, poder- se-ia comemorar o êxito das Regências em manter a unidade política do vasto território brasileiro.

Nesse contexto, a boa sociedade imperial, composta por uma elite imperial definida pela interseção entre poder econômico, político e intelectual, desempenharia um papel fundamental na formação da nacionalidade brasileira. Em um esforço coletivo de inserção do Brasil no rol das nações civilizadas, buscava-se ao mesmo tempo marcar a sua singularidade dentro deste conjunto. A este grupo estava destinada a tarefa de definir e difundir a idéia do que significava “ser brasileiro” e levar adiante o projeto de construção da nação.

Muitos membros dessa elite atuavam em diversas esferas de poder, alguns deles de forma surpreendentemente onipresente. É o caso de Januário da Cunha Barbosa, cujo exercício do cargo de Bibliotecário – o posto mais alto da Biblioteca Pública da Corte - é apenas uma linha, das mais relevantes, de seu longo currículo.

Nascido no Rio de Janeiro em 1780, Januário da Cunha Barbosa perdeu os pais muito cedo e foi criado por um tio paterno, que cuidou de sua formação escolar e religiosa. Januário ordenou-se em 1803, assim que atingiu a idade necessária para tal. Em 1808, com a transferência da Família Real para o Brasil, foi nomeado Cônego da Capela Real (posteriormente, Capela Imperial), tornando-se pregador régio. Desde então, até o fim de sua vida, aos 66 anos, transitou ininterruptamente – quase sempre de forma harmoniosa – pelos altos escalões da política e da intelectualidade brasileiras.

Em 1821, abraçou a causa da independência política, utilizando para tal o periódico Revérbero Constitucional Fluminense, criado em sociedade com seu então amigo Joaquim Gonçalves Ledo. O jornal durou exatamente um ano, tempo suficiente para garantir a proclamação da independência. Após rompimento com o governo e breve exílio – o qual foi considerado posteriormente, por ambas as partes, uma injustiça – Januário estava de volta à Corte, apoiando a Monarquia e o Monarca, que o condecorou com a Ordem do Cruzeiro e o nomeou para dirigir a Tipografia Nacional e o Diário Fluminense, órgão oficial do governo. Foi deputado na primeira Assembléia Legislativa do Brasil, entre 1826 e 1829, representando a Província do Rio de Janeiro, e ainda assumiu um segundo mandato em 1845 sem, no entanto, conseguir cumpri-lo integralmente.

Ao longo de mais de 25 anos, lecionou a Cadeira de Filosofia Racional e Moral da Corte. Colaborou com vários jornais e revistas, como o satírico
A Mutuca Picante (1834-35) e a Minerva Brasiliense. Escreveu orações, sermões, poesia e história, e publicou também o Parnaso brasileiro, ou collecção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto ineditas como já impressas..., considerado a primeira antologia de literatura brasileira. Em 1838, o Cônego participa ativamente da fundação do IHGB, sendo um dos maiores responsáveis pela consolidação da Instituição. No âmbito do Instituto, Januário produziu muitas memórias, biografias e elogios históricos, que foram publicadas na Revista do IHGB.

A esta altura, consagrado como intelectual, político, jornalista, cronista e religioso, freqüentador dos mais altos círculos políticos, Januário é convidado para assumir o cargo de Bibliotecário da Biblioteca Pública da Corte, substituindo Antonio Fernandes da Silveira. O Cônego aceita a árdua tarefa, mesmo sabendo que acumularia as funções do IHGB, provavelmente considerando a sua relevância para a construção e salvaguarda da memória nacional, além da promoção das letras e do conhecimento científico no Brasil. Seria certamente uma honra tornar-se “depositário de uma das preciosidades nacionais”, para usar suas próprias palavras. Pouco foi pesquisado a respeito de sua atuação como bibliotecário da BN. No entanto, parte da documentação disponível no acervo de Manuscritos da Biblioteca Nacional acerca de seu mandato permite reconstituir um pouco de sua atuação à frente da Instituição.

Januário toma posse do cargo em 5 de novembro de 1839 e, após alguns meses, reforçando sempre a importância da Biblioteca Pública para embasar seus pedidos, elabora um breve diagnóstico das necessidades da instituição. Infelizmente, muitas dessas necessidades são reafirmadas ano a ano, em cada relatório, sem que fossem atendidas.

Nesta época, a Biblioteca ainda ocupava o andar superior do prédio do Hospital da Ordem Terceira do Carmo. Com um acervo composto de pouco mais de 70.000 volumes, o espaço é diminuto e inadequado para o armazenamento das obras. O ataque de insetos – traças e cupins – era quase permanente, danificando os livros, alguns deles, exemplares raríssimos. Um prédio mais adequado, “menos acanhado”, é demanda constante do Bibliotecário. Essa mudança, entretanto, só vai ocorrer em 1858, para o prédio na Rua da Lapa (atual Rua do Passeio), onde a Biblioteca ficaria instalada até 1910.

O Cônego reivindica ainda o restabelecimento da Oficina de Livreiro e Encadernador, que havia funcionado anteriormente e se encontrava desativada. Ele lembra os riscos inerentes ao envio de obras de grande valor para encadernadores de fora da Biblioteca, além dos altos custos para esse tipo de trabalho. Não há indícios, até o final de sua gestão, de que tenha conseguido concretizar esse projeto.

Insistente é o pedido para que seja feita “uma medida legislativa para que de todas as obras que se dão à luz, pelo menos nas tipografias desta Corte, um exemplar se depositasse nesta Biblioteca, como é costume em todos os países”, diz ele no Relatório Anual de 1841. Embora esta medida já fosse uma obrigatoriedade desde novembro de 1822, tudo indica que não estava sendo cumprida. Daí a sua demanda pela retomada da prática do depósito legal, que seria regulamentada definitivamente por lei apenas em 1907.

A falta de pessoal também é um problema que aparece de forma recorrente nas solicitações do Bibliotecário. Contando com 11 ou 12 funcionários de diversos escalões, ele ressalta a carência principalmente de um número maior de jornaleiros que pudessem proceder com mais celeridade na higienização das obras (“único meio que encontra para evitar os ataques de insetos”), assim como de um corpo técnico qualificado para trabalhar na catalogação e inventário do acervo. Esse parece ter sido, aliás, um dos principais projetos do Cônego para a Biblioteca ao longo daqueles anos. Segundo o Bibliotecário, o catálogo era uma bagunça, feito sem qualquer metodologia, sendo muito difícil para o leitor encontrar o que procurava. Todo o sistema de catalogação deveria ser modernizado. Ele recomenda o nome do Barão Carlos Roberto Planitz para fazer o inventário do acervo e a nova Catalogação das obras, mas, insatisfeito com o trabalho do Barão, transfere esta tarefa a José Ventura Bôscoli, que já ocupava o cargo de substituto regular de Januário. O inventário de obras e a reforma do catálogo seduziram o Bibliotecário: “tive oportuna ocasião para conhecer a riqueza até hoje imperceptível de clássicos raríssimos e edições antiqüíssimas. (...) O conhecimento de tantas preciosidades até hoje quase desconhecidas enche de prazer a um coração tomado de zelo pela glória nacional”, diz ele no Relatório Anual de 1840. Durante sua gestão, o trabalho avançou bastante, mas provavelmente não foi finalizado.

Outro tema frequente é o programa de aquisições idealizado por Januário. Ele aponta, em todos os seus relatórios, a necessidade de se adquirir obras “modernas”, pois segundo seu entendimento a biblioteca é “muito bem servida de obras clássicas”, mas não possui as publicações mais recentes, procuradas com freqüência pelos leitores, como as de Ciências Naturais, Política, Indústria e Artes. Ao longo de sua gestão, chegam várias remessas de livros diretamente de Paris, com as quais “vai esta Biblioteca tornando-se mais recomendável à leitura dos estudiosos porque já nela aparecem muitas obras modernas que de todo faltavam, visto a longa interrupção que houve na compra de livros”. Seu prestígio pessoal entre os homens de letras possivelmente colaborou para que aumentassem as doações individuais. No primeiro ano de sua gestão, por exemplo, são registradas doações do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, de Domingos José Gonçalves de Magalhães, o editor Francisco de Paula Brito e Manoel de Araújo Porto-Alegre.

Januário, um homem de múltiplos talentos e funções, trabalhador incansável, foi pregador, jornalista, político, historiador, cronista do Império, professor de Filosofia e por fim, bibliotecário da Biblioteca Pública da Corte. Certamente, a sua atuação na Biblioteca contribuiu para consolidar a presença da Biblioteca no rol das grandes instituições do Império do Brasil.

Januário da Cunha Barbosa faleceu durante o exercício do cargo, em fevereiro de 1846, sendo substituído por José de Assis Alves Branco Moniz Barreto.

:: Copyright © 2010 | Fundação Biblioteca Nacional | ::