O tempo dos intercâmbios

Nas primeiras décadas do século XX, parecem ser reunidas as condições para sair do diálogo assimétrico entre europeus e americanos. Numa margem do Atlântico, a cidade vertical, a sede e a exibição do moderno afirmam peremptoriamente a superação da “infância”. Na outra margem, a modernidade já não opõe civilização e barbárie, mas exalta todos os primitivismos: arte negra, mitos e ritos indígenas… No entanto, fora algumas exceções, os diálogos franco-brasileiros ainda vão padecer de certos qüiproquós.

Se o modernismo brasileiro foi marcado pelas vanguardas européias, esta marca manteve-se difusa e filtrada por uma resistência aos modelos estrangeiros, uma vez que o programa do movimento consistia, entre outras coisas, em levar a cabo o processo de descolonização das mentes e em perfazer os contornos do “caráter nacional”. Os franceses, provavelmente presos a suas expectativas imaginárias a respeito do Brasil, levarão, por sua vez, mais de meio século para reconhecer (ainda que timidamente) a contribuição literária modernista. Todavia surgem aqui ou lá, ao longo do século, figuras como Cendrars, Péret, Bernanos…, cuja viagem ao Brasil desperta uma forma de “retorno das caravelas”.

É verdade que a redefinição dos equilíbrios internacionais e o choque das duas guerras mundiais, nas quais a Europa foi o principal foco e terreno de confronto, abalaram progressivamente as hierarquias continentais, efetivas ou interiorizadas. De modo que a realidade brasileira — devidamente interpretada ou não, não se trata de entrar agora nessa discussão — se tornou por sua vez fonte de inspiração para a antropologia ou de modelo na luta contra o ódio racial que incendiou o planeta. Tal é o sentido da fecundidade da Missão francesa na fundação da Universidade de São Paulo, através, entre outros, da herança deixada por Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide, ou do interesse francês por Gilberto Freyre, durante os anos cinqüenta.

Se França e Brasil, franceses e brasileiros podem hoje dialogar entre pares (uma possibilidade de que nos resta a usar e abusar), a história desdobrada por esse portal nos ensina afinal que nas relações de dominação germinam também os fermentos que a derrubarão, assim como podem perdurar em relações aparentemente de pé de igualdade recantos de “alienação”. Melhor dizendo, temos em nossas mãos, nesse meio milênio percorrido de nossa história comum e das « transferências » às quais ela deu lugar, os instrumentos de sua compreensão mais complexa e matizada.