BNDigital

“Cultura e Opulência do Brasil”, de André João Antonil

15 dez 2015


e marcado com as tags Antonil, Coleção Benedicto Ottoni, Cultura e Opulência, Livro raro, Memória do Mundo, pano e pau

Ao escravizado, “pão, pano e pau”...


um relato de cultura e opulência do Brasil no século XVIII


 

Há um livro na Fundação Biblioteca Nacional, com 8 folhas preliminares, 205 páginas de papel de trapos (papel artesanal, produzido a partir de trapos de linho), e 20,5 centímetros de altura, que é considerado um cimélio – o mais raro entre os raros.

Trata-se da obra do jesuíta italiano João Antônio Andreoni, que assinava sob o pseudônimo de André João Antonil, intitulada Cultura e opulência do Brazil por suas drogas, e minas, com varias noticias curiosas do modo de fazer o Assucar; plantar, & beneficiar o Tabaco; tirar Ouro das Minas. & descubrir as da Prata; e dos grandes emolumentos, que esta Conquista da America Meridional dá ao Reyno de Portugal com estes, et outros generos, et Contratos Reaes.

André João Antonil viveu entre 1649 e 1716. Consta que veio para o Brasil com o padre Antônio Vieira, em 1681, e aqui viveu até morrer. Exerceu o cargo de reitor do Colégio da Bahia, foi Provincial de 1705 a 1709 e teria empreendido breves viagens a Pernambuco e ao Rio de Janeiro. Em 1711, fez publicar em Lisboa, pela Officina Real Deslandesiana, a primeira edição de seu livro, depois de obter todas “as licenças necessárias”, em 6 de março de 1711. Mas, o livro foi proibido por D. João V, rei de Portugal (1707-1750), só voltando a ser impresso em 1837 – desta segunda edição, existem dois exemplares na Divisão de Obras Raras da Fundação Biblioteca Nacional. O rei, na ocasião, entendeu que o detalhamento das riquezas aso Brasil, além das rendas da coroa, poderia desencadear a cobiça de estrangeiros. Os exemplares impressos foram recolhidos e destruídos antes de sua distribuição. Salvaram-se aqueles que circularam “oficiosamente”, provavelmente, presenteados pelo autor ou pelo editor, e que hoje constituem tesouros nas bibliotecas guardiãs.

A Cultura e Opulência do Brazil está dividida em quatro partes e uma conclusão, e trata do plantio da cana e fabrico do açúcar, da lavoura do tabaco, da mineração, dos gados e do aproveitamento dos couros. Na “Conclusão”, o autor apresenta um resumo de tudo o que era mandado do Brasil para Portugal, e seu valor.

O relato de Antonil esclarece, por exemplo, como as minas de ouro eram distribuídas e exploradas, “numa autêntica catagem, que só necessitava braço humano, sem jeito especial ou inteligência amestrada". Já naquela época, segundo Antonil,

 

a maior parte do ouro que se tira das minas passa em pó e em moedas para os reinos estranhos e a menor é a que fica em Portugal e nas cidades do Brasil, salvo o que se gasta em cordões [...] e outros brincos, dos quais se vêem hoje carregadas as mulatas de mau viver e as negras, muito mais que as senhoras.


Para Antonil, os escravizados eram “as mãos e os pés do senhor de engenho”, porque sem eles no Brasil não era possível “fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”. E, para garantir a disciplina dos escravizados, Antonil recomendou que a eles fosse concedido, apenas, “pão, pano e pau”, ou seja, – pão para mantê-los vivos, pano para cobrir-lhes as vergonhas e pau para fazê-los obedientes.

Mas, seu conteúdo ultrapassa o relato e a visão estratégica de um religioso sobre a variedade de produtos e o significado do Brasil como fonte de riqueza para Portugal. Trata também da cobiça e outros vícios, de poder e submissão, de hábitos e gostos, de comidas e bebidas, do clima, de plantas e bichos, da natureza, do clima, da família, da mulher, do escravizado.

Pela multiplicidade de suas abordagens, o livro é considerado o mais completo depoimento que se conhece sobre a vida econômica do Brasil no tempo colonial. Seu valor documental foi reconhecido por todos os grandes estudiosos da Bibliografia Brasiliana, como Inocêncio Silva, Backer-Sommervogel, Sacramento Blake, José Carlos Rodrigues, Borba de Moraes, Borba de Moraes & Berrien, Wilson Martins, Capistrano de Abreu e Serafim Leite. Seu valor permanece documentado nas pesquisas de estudiosos como o bibliófilo e bibliógrafo Dr. Hariberto de Miranda Jordão Filho e os professores Dr. Pedro Puntoni (Universidade de São Paulo), Dr. Raimundo Agnelo Soares Pessoa (Universidade Federal de Goiás) e Dra. Andrée Mansuy-Diniz Silva (professora aposentada da Sorbonne) – que emitiram pareceres favoráveis no dossiê de candidatura da obra ao selo “Memória do Mundo/Brasil”.

Sete exemplares, apenas, são conhecidos em todo o mundo: o exemplar da Fundação Biblioteca Nacional brasileira, no Rio de Janeiro [1º]; um, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, proveniente da Faculdade de Direito da USP [2º]; um, da Biblioteca Nacional de Portugal [3º]; e outro, da Biblioteca Nacional da Ajuda, também em Portugal [4º]; mais um, na Biblioteca Nacional francesa [5º,]; um, no Museu Britânico [6º]; e o exemplar adquirido pela John Carter Brown Library [7º] em leilão da Sotheby's de Londres, em 2001.

Ainda não houve um estudo comparado de crítica textual e descritivo da materialidade dos exemplares conhecidos, à luz de eventuais versões manuscritas, de modo a identificar formas não coincidentes e a definir a edição ne varietur – a edição definitiva, que pode não ser a primitiva, mas, aquela designada pelo próprio Autor, em qualquer momento, ou o “exemplar ideal” – o mais perfeito da impressão de uma edição.

Essa perspectiva ganha importância com a revelação da cópia de um manuscrito – que não consta das fontes consultadas de pesquisas sobre a obra – num códice factício da Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional, onde foram reunidos documentos que tratam de tesouros e riquezas do Brasil. No conjunto, o item de maior renome é o Documento 512, conhecido como o “mapa da Cidade Perdida”. O manuscrito nº 6 do códice foi indexado no Catálogo da Exposição de História do Brasil, publicado originalmente em 1881, sob o verbete 12900, onde consta:

 

Opulencia, e Cultura do Brazil, nas Fabricas do Assucar, Tabaco, Ouro, Couro, e Sola. Fragmentos tirados de hum Livro d’Academia Real das Sciencias. Impresso em Lxª em 1711. Cujo foi prohibido por el Rei Dom Josão 5º por lhe dizerem q por dito Livro estava publico todo o Segredo do Brazil aos Estrangeiros &c. // São cópias manuscritas de excerptos de vários capítulos da obra de André João Antonil. Estão incompletas. [...] ff. 6 a 10. 5 ff. 27x18


O exemplar da Biblioteca Nacional é o mais completo em território brasileiro e a fonte da multiplicação do texto em teses, artigos, livros, e em centenas de sítios na web, disponível para leitura, em qualquer lugar, a qualquer momento, em papel e em bits e bytes. Foi comprado do bibliógrafo José Carlos Rodrigues, que negociou sua coleção em vida. A coleção foi adquirida no início do século XX, pelo industrial Julio Benedicto Ottoni, detentor do contrato da iluminação pública da cidade do Rio de Janeiro e, sob seu nome de família (Coleção Benedicto Ottoni), foi doada à Biblioteca Nacional. Desse modo, o cimélio de Antonil passou a compor o acervo da Biblioteca.

O exemplar foi fac-similado, microfilmado e digitalizado. Está preservado, como conteúdo, no portal da BNDigital; e como conteúdo e continente, nos cofres da Divisão de Obras Raras.

É ler e conferir este bom exemplo de tesouro de todos os brasileiros – oficialmente, patrimônio da Humanidade, após receber o selo “Memória do Mundo/Brasil”, conferido pela Unesco em 10 de dezembro de 2015 – uma memória que se revela a quem busca as fontes originais e autênticas de informação sobre um Brasil que não pode ser ignorado

 

Texto atualizado, publicado originalmente em:

Caderno dos Bairros: informação para uma melhor qualidade de vida, Rio de Janeiro, ano 1, n. 7, maio 2007. Tesouros da Biblioteca, p. 4; e Revista África e africanidades, Rio de Janeiro, ano 1, n. 2, ago. 2008.

 

Ana Virginia Pinheiro é Bibliotecária Chefe da Divisão de Obras Raras da FBN e Professora da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO

Certificado Antonil

1

2

3

Os comentários estão desativados.