O Brasil infanto-juvenil
O romance de mar, frequentemente inspirado do que viveram seus autores e por isso parente próximo do relato de viagens, é delimitado por fronteiras também permeáveis às aventuras voltadas para o público infanto-juvenil. Especialidade dos círculos católicos até a metade do século XIX, ela se emancipará a partir dos anos sessenta, principalmente graças às iniciativas editoriais de Hetzel. É assim que Les Portugais d’Amérique (1847), de Julie Delafaye-Bréhier, é visado pelo arcebispo de Paris. Situando a intriga em 1635, este relato tanto quanto possível edificante pode opor bons e maus escravos, índios ou negros, os desafortunados portugueses da costa brasileira perseguidos pelos heréticos holandeses, e dar lições sobre a arte de ser um bom mestre e senhor. No decorrer do século, o romance para jovens não vai deixar de se interessar, de maneira mais ou menos feliz, ao Brasil, à Amazônia e à Guiana. Autor da série mais adulta L’Amazone (ver “O Brasil e a literatura francesa do século XIX”), Émile Carrey se dirige claramente para as crianças com Les Aventures de Robin Jouet (1864), esforço continuado por Louis Boussenard, com o bastante chauvinista Les Chasseurs de caoutchouc (1887) — onde o autor reivindica a “restituição do Contestado” (atual Amapá) —, e por Armand Dubarry, com Les Aventuriers de l’Amazone (1890). Antes, Alexandre Dumas pai (e sua oficina de escrita) reescreve uma das versões do Eldorado em Un pays inconnu (1865), lugar de sobrevivência secreta do Império Inca que teria encontrado um refúgio no interior profundo da selva. Conan Doyle, do outro lado da Mancha, desenvolverá um outro aspecto desse mito em The Lost Continent, que por sua vez vai inspirar o Spielberg de Jurassic Park…
Jules Verne e A Jangada
É porém Jules Verne (1828-1905) que vai, em 1881, enaltecer esta literatura sobre o Brasil com A jangada. Este romance, situado na Amazônia — já divisado no fim de Chancellor (1875) —, não se distingue das outras narrativas apenas pela força do imaginário que o sustenta, mas também pela sua ancoragem nos debates do seu tempo.
O encontro fortuito em Le Tréport, na primavera de 1878, do escritor com os descendentes de Louis-Philippe, o Conde de Paris e Gaston d’Orléans, coincide com a fase da gênese do livro. Ora, Gaston d’Orléans, o Conde d’Eu, era desde 1864 o esposo da Princesa Isabel, ou melhor dito, o genro de D. Pedro II... Isto explica talvez porque, ao escolher começar a intriga com um antipático capitão do mato, de imediato Jules Verne levanta uma questão sensível tanto para seu público quanto para a família real: a permanência da escravidão no Brasil. E porque, após uma recente apologia abolicionista em Um capitão de quinze anos (1875), ele aborda o tema poupando as autoridades brasileiras. Será ainda mais reservado em relação ao litígio de fronteiras concernindo a Guiana Francesa.
Sem nunca ter viajado para a América do Sul e por isso dependendo de suas leituras, o romancista tira suas informações sustentando o lado pedagógico da coleção inventada por Hetzel, o “Magasin d’Éducation et de Récréation”, com um amplo espectro de documentos: artigos de revistas (Bulletin de la Société de Géographie, Revue des Deux Mondes…), relatos de viagem (Dois anos no Brasil, de François-Auguste Biard, 1862; Le Brésil contemporain. Races, mœurs, institutions, paysage, de Adolphe d’Assier, 1867…), contribuições de historiadores, geógrafos, sábios e naturalistas (privilegiando os franceses La Condamine, Auguste Saint-Hilaire, Jules Crevaux ou Élisée Reclus, mas também lendo e citando Henry W. Bates, Spix e Martius, Louis Agassiz, o engenheiro alemão Franz Keller-Leuzinger…), ou ainda obras de romancistas contemporâneos, como Émile Carrey.
Útil ao projeto educativo, esta interpenetração da observação, do testemunho e da prosa romanesca age igualmente na estrutura da ficção. Assim, o percurso feito pela família Dacosta-Garral e sua jangada gigante, de Iquitos a Belém, toma emprestado um trecho do trajeto de Viagem pelo Rio Amazonas, do bordelês Paul Marcoy, aliás Sr. Laurence Saint-Cricq (1868) — uma fonte oportuna, desde então, para a descrição das aldeias percorridas. E a invenção de personagens tais como o capitão do mato ou o barbeiro Fragoso nasce das considerações de Ferdinand Denis sobre tipos brasileiros ou os diferentes estatutos de cabeleireiro dados em Le Brésil.
No entanto, se o universo de Verne em A jangada e outros dá o testemunho de uma época, feita de euforia científica e entusiasmo civilizador, onde o humanismo pode ir de par com o projeto colonizador o mais redutor possível, ele a transcende com sua capacidade para fazer viver e reviver fantasmas e mitos antigos ou modernos, para reatualizar certas obsessões do autor: da utopia da ilha flutuante ao erro judiciário, do gozo dos significantes à erotização da paisagem, dos mistérios da identidade às máquinas desejantes da imaginação.