As idéias de revolução
Foi a partir de meados do século XVIII que a América Portuguesa começou a ser influenciada pelo nascente pensamento liberal e burguês que vinha da França. Formalmente protegida de influências estrangeiras pelo pacto colonial imposto pela metrópole, a colônia sofria com um longo processo administrativo necessário para importar livros, mesmo portugueses. Era nas mãos da censura do Antigo Regime português – exercido em diferentes momentos por diferentes órgãos – que recaía a responsabilidade sobre o que era proibido e o que era permitido aos colonos americanos. As autorizações não eram conferidas automaticamente, variavam de acordo com o solicitante: sua posição social e ocupação. Essa estrutura, apesar de confusa aos olhos contemporâneos, reproduzia a política de privilégios vigente no Antigo Regime.
Como todo sistema normativo, o pacto colonial tinha, entretanto, brechas que eram exploradas por indivíduos e que ajudavam a criar novos pensamentos e possibilidades políticas na colônia. Os reinos europeus e a própria França viam-se às voltas com os “abomináveis princípios franceses”. Os livros proibidos da França pré-revolucionária eram impressos fora do reino e entravam nele por meio de contrabando, vendidos ilegalmente por livreiros tradicionais que chegavam a ter dois catálogos, um para livros autorizados e outro para os chamados “livros filosóficos”. Do que tratavam os livros filosóficos? Escritos políticos, biografias polêmicas, pornografia. O elemento comum dessas obras – em grande parte apócrifas – era o fato de que todas tinham um caráter libertário, polêmico e racionalista. A essas obras populares, que caiam facilmente no gosto dos franceses, uniam-se outras mais complexas, escritos dos famosos filósofos do Iluminismo: Rousseau, Montesquieu, Voltaire e os enciclopedistas Diderot e D’Alembert.
À colônia portuguesa eram principalmente – ainda que não exclusivamente – essas obras iluministas que chegavam. Eram poucos exemplares, escondidos, vigiados pela administração e pelos órgãos da censura, mas que circulavam entre grupos de leitores, sendo lidos e discutidos coletivamente. Chegavam principalmente na bagagem dos estudantes que o Brasil começou a mandar à Universidade de Coimbra a partir da década de 1730. Vinham também através de funcionários régios portugueses e membros da administração portuguesa. Ao chegar ao Brasil, passavam a compor as seletas e exclusivas bibliotecas coloniais, ainda hoje estudadas e analisadas. Serviam as obras de embasamento de grupos que buscavam uma maior flexibilização das relações coloniais: maiores liberdades de pensamento, econômica e, em menor escala, política.
Essa influência dos “abomináveis princípios franceses”, conforme as chamavam os representantes do absolutismo monárquico, foi por muito tempo considerada a principal motivação das inconfidências do fim do século XVIII. Estudos mais recentes, entretanto, mostram que tais revoltas – notadamente a inconfidências mineira – foram típicas da crise do sistema colonial. Ainda que as ideias iluministas compusessem a miríade de influências que formavam as tendências políticas constituintes desses movimentos, diversos outros fatores, inclusive conservadores, tiveram igualmente sua influência reconhecida.
O fato é que, após os autores iluministas e as revoluções francesa e de independência do Haiti e dos Estados Unidos da América, as relações coloniais começaram um processo sem retorno de esfacelamento e desestruturação. No caso do Haiti, por exemplo, devido ao seu caráter popular e de reestruturação completa da sociedade local, a independência foi um marco para as relações entre colônias e metrópoles. Esse movimento teve sua influencia prolongada até períodos posteriores da política brasileira, servindo de paradigma para as discussões relativas à força de trabalho e o fim da escravidão. Dessa forma, o medo do risco do “haitianismo”, da reprodução do caso do Haiti no Brasil, onde as elites dominantes foram depostas pelos grupos desprivilegiados, perpassou também todo século XIX.
Ainda que não se relacionem diretamente ao processo de independência do Brasil – como se convencionou pensar a partir da reconstrução da história brasileira promovida pela proclamação da república em 1889 – os princípios do Iluminismo criaram uma cisão irreparável nas relações políticas, opondo ideias liberais e conservadoras que seriam, essas sim, os principais fomentadores da separação de Brasil e Portugal.