O Brasil na literatura francesa no século XIX
No século XIX, é óbvio que o espaço brasileiro não oferece aos escritores franceses nada comparável ao que foi a “viagem no oriente”. Na maior parte das vezes, ele interessa a uma literatura de gênero, que apesar de ser considerada “menor” tem contudo seus florões.
O primeiro, que não passa de fragmentos inacabados, deve-se a Bernardin de Saint-Pierre (1737-1814). Pouco importa se a fauna e a flora de L’Amazone pareçam hoje fantasistas, o relato comprova a existência de um déficit de imagens ligados ao longo fechamento da colônia brasileira desde o século XVII, e ao mesmo tempo do imaginário utópico herdado das Luzes e transplantado para uma região que nunca deixou de dar origem a fantasmas e ficções (ver, por exemplo, dentro desse mesmo espírito, os capítulos 16 a 18 de Cândido, de Voltaire, atravessando sucessivamente a terra dos Orelhões e o Eldorado). Na sua variante idílica, C. M. Antonet publica em 1840 uma espécie de Paul et Virginie: Sylvino et Anina. Mœurs brésiliennes.
Paralelamente aos primeiros textos de Ferdinand Denis que logo vão inspirar Daniel Gavet, Philippe Boucher e Eugène de Monglave, Édouard Corbière (1793-1875), o pai do poeta Tristan Corbière, publica em 1823 Élégies brésiliennes. A obra chama a atenção especialmente por dois panfletos humanistas antecipadores de nossa modernidade. Apresentando-se como antigo oficial da marinha, o autor, que tem de fato uma experiência do mar, se entrega na epístola dedicatória a um arrazoado em favor dos índios que vai além de um mero rousseaunismo, e depois encerra seu volume de poemas — cuja primeira parte é supostamente inspirada em cantos indígenas — com um rude precatório contra o tráfico negreiro: “Notice sur la traite des Noirs”. Aliás, ele conhecerá o sucesso com Le Négrier (1832), que inaugura o gênero do romance de marinheiros.
Num registro bastante diferente, mais elevado e convencional, os versos latinos de Théodore Taunay, traduzidos em francês por seu irmão Félix Émile e publicados em uma coletânea bilíngue no Rio, em 1830, não são contudo menos surpreendentes. Esta curiosidade alterna o diálogo elevado, a deploração ou ainda o canto ao nascimento de D. Pedro I, o encorajamento a José Bonifácio de Andrada, a evocação da retirada da Rússia… e até alguns versos ingleses imitados de Southey. Porém, Les Idylles brésiliennes parece ser os últimos fogos de uma tradição épico-lírica, que se extingue na França, simultaneamente com as traduções de Eugène de Monglave.
Se apresentando, assim como Édouard Corbière, como oficial da marinha, o prolixo Guillaume de La Landelle parece continuar esta tradição do romance de mar em 1883 com, entre outros, Aventures et embuscades. Histoire d'une colonisation au Brésil. Mas na verdade, o autor se inspira mais nas suas leituras: a de F. Denis, de novo, mesclada a Fenimore Cooper. Nostálgico da ordem aristocrática, o livro é, por outro lado, um ataque contra o Marquês de Pombal que expulsara os jesuítas das terras portuguesas em 1759, e, indiretamente, contra as Luzes e a Revolução Francesa. Se deslocando para terras brasileiras, as personagens terão finalmente que lutar contra um equivalente indígena do marquês, pérfido e sedento de poder…
Podemos também aproximar parcialmente do filão marítimo os quatro tomos de L’Amazone, de Émile Carrey (1820-1880). Advogado, tendo trabalhado na difusão de documentos parlamentares sob o reinado de Louis-Philippe e também para o governo da Segunda República, logo em seguida este autor viajou para a América do Sul, antes de acompanhar a expedição militar na Cabília, em 1857 (Récits de Kabylie, 1858). O primeiro volume de L’Amazone, Huit jours sous l’équateur (1856), foi logo seguido por Les Métis de la Savane (1857) e por Les Révoltés du Para. Com sucesso, já que os três foram logo reeditados, pelo menos uma vez antes de 1860. Um certo didatismo, misturado ao romanesco e à aventura exótica, não vai deixar de inspirar o Jules Verne de A jangada (ver “O Brasil infanto-juvenil”), sem dúvida um leitor da reedição de 1872, que inclui La Dernière des N’hambahs. Também autor de um livro sobre o Peru (1875), Émile Carrey vai ingressar na carreira política durante a Terceira República, da qual ele será um dos deputados.
Desde os anos 1860, ou seja, aproximadamente duas décadas antes do aparecimento do “rastaquera”, o romance faz surgir uma imagem suspeita do brasileiro, já prefigurada pelo Barão Henri Montes de Montejanos, de La Cousine Bette, de Balzac (1846). Em Une Épopée au Brésil (1869), contando aventuras menos épicas do que rocambolescas de franceses que partiram para fazer fortuna — em parte inspiradas pelo período que o autor passou no Brasil, aliás ele batiza seu personagem principal com um patronímico invertido: Elleur —, Ruelle-Pomponne esboça um quadro desanimador do país. Em 1879, o romance popular de A. Matthey, num quadro essencialmente parisiense, fará de La Brésilienne uma figura sedutora, traiçoeira e literalmente venenosa. É verdade que, nesse meio-tempo, o sonho latino-americano da França se embaçou definitivamente com o fracasso da expedição mexicana.
Mas em matéria de literatura, para além do enraizamento histórico, é necessário que restemos atentos ao trabalho do imaginário (tanto no leitor como no autor) subjacente ao clichê, a anedota ou a circunstância, mesmo surgindo da pluma de um Victor Hugo. Trabalho que ilustra talvez, subliminarmente, em Um coração simples, de Flaubert (Três contos, 1877), o papagaio de Félicité…