Para saber mais
A Terra de GonnevilleRevelado parcialmente no século XVII pelo abade Jean Paulmier de Gonneville, o relato do capitão Binot Paulmier de Gonneville conheceu uma trajetória conturbada.
Após ter partido de Honfleur com destino às Índias Orientais em junho de 1503, o navio L’Espoir foi levado por uma tempestade até uma costa do Atlântico onde a tripulação permaneceu durante seis meses. Uma vez de volta, são e salvo mas tendo perdido todos os seus bens, o capitão registrou queixa junto ao escrivão do Almirantado de Rouen em 1505. Em 1663, o abade de Gonneville reproduziu o testemunho de seu antepassado de maneira tão truncada que era difícil determinar com precisão em que terra eles tinham chegado. Este relato cristalizou o desejo de império e o mito da terra austral. Em 1869, o sábio Charles d’Avezac revelou o documento original: um francês tinha ido ao sul do Brasil e um índio, por sua vez, desembarcara em terras normandas.
O relato ainda suscita dúvidas quanto à autenticidade e à veracidade da viagem, mas a história contada, feita de trocas e de amizade, é bela. É cativante o olhar sobre as sociedades amerínidas que a longa estadia permitiu melhor descrever, e as sequelas humanas dessa aventura são espantosas. Assim Essomericq, um dos dois índios carijó que o capitão embarcou em seu navio e que, apesar da sua promessa, ele não pode levar de volta à sua terra, deixou descendentes em solo normando. Um mito benfazejo, segundo Leyla Perrone-Moisés, apto a inspirar a atitude de hoje.
Uma festa brasileiraEm 1840, Ferdinand Denis publicou um relato ilustrado com uma gravura que contava minuciosamente a entrada solene do rei Henri II e de sua corte em Rouen em 1° de outubro de 1550. Foi montado um imenso cenário representando a terra brasileira com sua floresta, o corte e o transporte do pau-brasil, os animais e as frutas “ao natural”. Segundo os testemunhos, os espectadores adoraram ver as danças, os jogos e simulacros de combates aos quais se entregaram índios e marujos normandos, “todos igualmente nus, bronzeados e de cabeleiras revoltas”. E a atração principal do espetáculo: o ataque de uma nau portuguesa que no final é queimada.
Os índios foram hospedados em uma casa chamada Hôtel de l’Isle du Brésil, da qual foram conservados painéis esculpidos representando cenas do Novo Mundo. Não se sabe se os índios ficaram em terras normandas ou se puderam voltar para casa.
O espetáculo foi um imenso sucesso, e outras festas de silvícolas brasileiros e americanos se desenrolaram em Troyes em 1564, e em Bordeaux no ano seguinte.
Montaigne: “abarcamos tudo, mas abraçamos apenas vento”Esta frase do capítulo “Dos canibais” (1580) anuncia o vibrante “Dos coches” (1588), dois dos mais célebres ensaios consagrados à descoberta e à exploração dos Novos Mundos. Em sua biblioteca, Montaigne lê os antigos e os modernos, entre os quais André Thévet e Jean de Léry. Além disso, ele tem um empregado que passou um período no Brasil na época da aventura antártica. Também já a primeira edição dos Ensaios consagra um capítulo aos canibais, de quem ele exalta a liberdade, a virtude e a generosidade. Assim como Jean de Léry, Montaigne observa que a crueldade não é apanágio destes comedores de carne chamados de “bárbaros, em relação às regras da razão, mas não a nós, que os ultrapassamos em toda a espécie de barbárie”. Sua fórmula “cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra” reflete a instabilidade de todas as certezas. Contrastando com a visão feliz da infância da humanidade, o capítulo “Dos coches” condena as injustiças da colonização.
Montaigne assinala a crise da consciência europeia e anuncia uma vasta literatura sobre os costumes, as formas de organização política e o ideal de liberdade.
Mapas, estampas e gabinetes de curiosidadesBem cedo os registros da vida selvagem já tinham invadido os mapas, gravuras e ambientes. A natureza luxuriante, a flora e a fauna oscilavam entre reminiscências clássicas e notas realistas: esplêndidos papagaios, macacas e saguis, árvores e frutos, animais estranhos. A nova humanidade se refletia no corpo nu dos indígenas, na pintura da guerra e da cena canibal.
As representações cartográficas dão origem a sonhos de ilhas e de arquipélagos, a projeções fantásticas. As suntuosas cartas ornadas com iluminuras do Atlas Miller (1519) apresentavam os corpos trigueiros dos ameríndios, adornados com plumas e armados de flechas, cortando a madeira e correndo em direção às naus. A cartografia torna-se mais precisa graças às explorações, como mostra a obra de Guillaume Le Testu , que fez, em 1551, uma viagem de reconhecimento. A inspeção continua com os mapas de Reinel, de Jacques de Vau de Clay, dos Teixeira.
A efêmera colônia dá origem a um poderoso imaginário. E todo esse conjunto será retomado no compêndio iconográfico de Théodore de Bry no fim do século XVI. A paixão pela coleção, aliás, alimenta os gabinetes de curiosidades. O de um André Thevet, ou o de Montaigne, que contém redes de dormir, tacapes, bastões de ritmo.